segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Desconstrução

"Edifício poço luz/ nome assobio no vácuo/ esperança de emergência" - C.D.A

Um prédio implodido
não é mais um prédio
não é mais vida, não é mais medo
mais desejo
O prédio derrubado, como a lágrima dos olhos
não é história, nem sonho
Não é a imagem vista pelos cegos
não é o gume da faca que corta
não é o desenho que o engenheiro
empapou na água

As vigas caíram, as armações
o duro aço de suas colunas
se quebrou
como palitos de madeira
A tinta da parede descascou
as janelas, tortas e disléxicas
já não iluminam ou se deixam abrir.

Caído, tal o corpo do bêbado
o prédio demolido agora se foi
fugiu-nos em mares de poeira
vozes de cal
distintos gritos da dinamite instalada em
seu alicerce. Não há mais moradores
em seu terreno

Os tijolos, os blocos, a areia
o preto reflexo do suor dos trabalhadores
a flor amassada, a flor crescida nas quinas da quadra
a memória das horas gastas
Partiram, uma a uma
como a náusea dos marujos
o gasto dos pródigos

E no edifício, no que é sua memória
um menino dormia
Uma mulher deliciava-se em partituras
um cachorro gastava latidos pela noite
alguém cozinhava feijão
enquanto um corpo diluía-se no próprio corpo do outro.
E haviam luzes acesas ao longo dos andares
placas comerciais, animais, câmeras
e um garoto que olhava da rua

Um prédio desnudo, sem altura ou base
desaparece da cidade. E com ele
o amor e os moradores
o som e a palavra
a mobília, o sexo, o cheiro, a fantasia dos loucos
o canto, o espaço, o leito
as plantas postas na calçada





sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Um vaso

Toco um vaso
e o sinto na ponta dos dedos.
A intransponível forma de sua porcelana
é rígida e concisa.
As flores vermelhas presas a secura
da composição
a dor comedida das cores
atadas ao frio material

Sinto o vaso e sei que não me espelho
em seu interior
minha imagem perdida
na profundidade do corpo
na ressonância das ondas

Olho o vaso e suas vértebras
o ângulo de todas as curvas
solitário como um elefante
um leão a beira mar.

Perdido em sua própria maré
o vaso se solta de mim
foge pelos dedos negros
come meus olhos e minha ansiedade
em busca de libertação.

Onde haviam flores, só resta
o barro falecido e cortante
o opaco do lirismo tatuado na pele
o vaso sombrio
sem flor, sem cheiro, sem nada

Os colibris se perderam
as flores se perderam
se perderam também os homens e
as águas que fluem a história. Os nomes
o número das camisas
a memória de minha avó

A flor que não desabrochava murchou
o camponês cuidando da vaca morreu
o vento que leva o outono
o sangue espalhado nas fábricas
tudo se foi. Tudo se foi

E eu também me fui
em forma de cacos
que atravessam os dedos

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Travessia

"talvez porque nunca tivesse olhado, a não ser, um sonho" - Jorge Luis Borges

Não me significa nada
o caminho percorrido pelo leito do rio
ou o asfalta das estradas.
Tudo é como a pedra estancada no chão
intacta
disposta a passagem do vento,
a histeria dos cidadãos

Já não penso mais no individuo perdido
na cidade ou no mar.
Penso no desejo guardado pelos braços
a raiz das cores da pele
a textura do espirito:

Mas de que interessam os caminhos se existe um labirinto na nossa rota?
A história, a língua, a polifonia e a matemática dos gritos desesperados, para que servem?
O que fazer com as noites de lua branca e também com as primaveras?
Se não nascemos nas estrelas, por que querer voar?

Sem reflexo e sombra
procuro algo perdido dos mapas, das esferas, dos livros
e da secreção dos apaixonados.
algum alimento que nutra minha carne
e também minha bile
Uma busca ao imaterial, o eterno mar de alguns
(mas se não posso ultrapassar os limites da carne, então por que alimenta-la?
Por que querer adubar uma planta seca?)

Quero entrar para a história do mundo
e em seu portão escrever meu nome
honrar cada lágrima escondida do medo.
Um mausoléu resguardado de ternura
os metros de horas devorados por uma fumaça negra
que as ondas do passado insistem afogar