terça-feira, 18 de novembro de 2014

Despedida

Mas então meu pai
do quarto do lado
calado na alma e no gesto
como um deserto
largava suas lágrimas
pelo carinho negro
da face
E abandonado em sua cama simples
dizia
a tradição e a benção que me doava.
Chorava o muro
a coluna
a água do meu rim

E eu não olhava para trás
e a mala já parecia de chumbo
e meu corpo pesava como ferro
e a perna
cumprida se reduzia
e o som da sanfona era o da lembrança
do vivido passado no espelho
O pai dizendo
enquanto sentia arrancarem uma costela
Vai, meu filho
Vai

domingo, 9 de novembro de 2014

1

Não me impede de cantar
todo o corpo,
todos os dias
toda minha nudez
de sentimentos.
Como a água
que lava a areia
eu ouço a voz
fugindo pela boca
procurando
barcos naufragados

Porque tenho pele e também passos
largos
eu vou
agarrando o cabelo
e me cobrindo do frio

Amor amor eterno amor 
de dois dias
Se sou vazio
sou ar, sou boca
sou mar, mel e pão

E você em mim
mora na memória
e grita sem olhar para trás
e come sem usar os dentes
e transa sem a carne
e vagueia sem a mente
e tem tédio sem ter tempo

sábado, 4 de outubro de 2014

Sobre minha terra

Saudade da minha terra
que vivia em claro
quando nascia uma flor
e alguém tocava seu violão

Saudade, disse pra mim
e também para minha terra.
Se eu escrevesse uma carta
ou cantasse uma canção
talvez lembrasse do passado
como doce recordação

Mas se eu apenas ficar
sentindo o frio dessa saudade
como a tristeza de uma corda
vou morrer, vou parar.
Não honrarei minha terra
que sempre foi de fé

Longe de tudo, até mesmo da noite
em caminho longo tento voltar
pois se fico onde estou
no ostracismo da saudade
não escrevo sobre minhas estradas
que não se facham jamais.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Sexta-feira

Na cidade uma mãe chora
a policia mais assassina do planeta
acaba de fazer uma vítima.
Era daquele mesmo tipo
negro pobre
estereótipo de garoto fudido.
Não trazia erva ou pó
nem roubou ou fumo
Não era ladrão
só pensava em desenhar o próprio rumo

Por aqui todo dia é assim
toda hora morre um
estudante, amigo, o ditado comum
E as famílias ficam em casa
assistindo o jornal
que se diz do bem
mas escreve sua manchete
com meu sangue marginal.

E já que é como é:
Chora meu amigo, chora brasileira
em todo esse planeta
a polícia sempre escolhe
os filhos de mãe preta

Mas vai continuar assim, Sr. Policial?
Acabou a escravidão e ainda me tratam de animal.
até sonhar é proibido.
Se for ser assim, então que me prendam, que me levem
Para a áfrica, pra lá do exílio.
Mas se for pra ficar, te peço respeito
com minha pele sou escuro, também sou sujeito
Suamos todos, afinal
no mesmo lugar e do mesmo jeito

Eu bem sei o que se passa
e não vou mais aguentar
se tentarem me ofender
vão ter que me aturar
porque já é do passado
aquela velha fase de lama
que rasgava, que ardia
que queimava feito chama

Então escutem bem meu desejo
pois uma vez só uma vez vou falar:
Agora é outra hora
novo dia, nova história
Também quero jantar em banquete de glória

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Gilberto Gil

Gilberto Gil é a poesia
que explode da garganta.
Gilberto Gil é a melancolia
e o amor da família.
Gilberto Gil, a favela
o quilombo, o nome dos esquecidos.
Gilberto Gil  é o amor de Luzia
o domingo no parque
o Jeca Tatu, total.
A mente da gente
a gente voando
a gente sem tempo
o tempo da perdição.
Gilberto Gil, aquele que guia
onde ainda não sei
Londres, Bahia
abacateiro, mato.
Gilberto Gil, nome e sobrenome
o mar que dorme no porto
a cor de mel
o natural, o itinerário de viagem
o ânimo, a fé, a África.
Gilberto Gil dos homens e das mulheres.
Gilberto Gil estrela, orientação
tudo que se passa no infinito
a planta que pede água
o choro que não pode continuar.
Gilberto Gil rebeldia, luminoso
amor de pai e mãe.
Gilberto Gil a voz hidratante
da pele escura.
Gilberto Gil é o outro
Gilberto Gil, Caymmi
Gilberto Gil, Gonzaga
Gilberto Gil, João Gilberto.
Gilberto Gil a vela acesa
e o copo vazio
que existe em cada um de nós.
Gilberto Gil a dança, o ritmo.
Gilberto Gil de todo
totalmente absoluto
Rei dos dias, príncipe do tempo

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Encruzilhada

Em frente as paredes do quarto
sou um sonhador
invento palavras, texturas, melancolias
temperaturas que deslizam pelos corpos
Não há o que seja impossível
na areia de meu punho
vejo noites, cavalos e portos
duas crianças abraçadas na luz do sol
o trem que grita aos surdos
trilhos atravessando a pele
Sozinho até mesmo de mim
sou faca, navalha, fé e cruz
Encruzilhada
o vento grisalho dessa cidade-exílio
de loucos e medos

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Para Suassuna

"Não sei, só sei que foi assim" - Auto da Compadecida
"Esse fogo não tem quem apague, Dinís. Esse já está queimando há muitos anos"
- Romance d'a pedra do reino 


Escuta meu velho,
Aqui, dessa triste cidade acinzentada
Pop-rock, moderna metrópole de status americano
procuro um canto de silêncio.
Para lembrar que um dia
abri umas folhas com seu nome
na busca de uma imagem distante
quase apagada das vidas daqui:
a terra rachada, a lâmina na mão, o brilho
a ternura afiada. Os reinos do povo, a morte, o medo, o mito cor de cobre.
E pensei ter encontrado tudo, meu velho
porque frente a frente com as folhas que tinham seu nome
vi meus avós, minha tia, o parto da minha família
a missa de sétimo dia. O caminho do cacto, o ressecado choro do palhaço.

E como gostei, Ariano, daqueles tempos de ser herói, um jeito bambo, engraçado
elegante, vadio, caminhando como cavalo pela terra seca.
E hoje, depois de tudo isso?
Meu velho, uns  dias chorei e em outros ri.

sábado, 24 de maio de 2014

Itinerário

"(Dessas rosas muita rosa/ terá morrido em botão...)" - Manuel Bandeira

Nunca escrevi versos dignos
como o gesso mortificado nas paredes
as palavras morriam em minha boca

Nunca encontrei o néctar da vida
o fino liquido que percorre a experiência
o familiar e o simples da poesia

Meu itinerário, o guia de meus dias
singular, exatamente igual a vida de um rio
se perdeu no progresso das cidades

Jamais soube dançar os ritmos brancos
venho sendo o que nunca desejei aos outros
"nos ossos, nos olhos, nos ouvidos, no sangue, na carne"

Os labirintos, os caminhos
os livros, os marginalizados
tudo posto no vasilhame negro que é meu corpo,

individuo dividido, incompleto

Um dia quis ser poeta
me arrependi
profundamente


quinta-feira, 17 de abril de 2014

A imagem

Atrás da clara lente dos óculos
busco uma imagem turva
guardada por uma nuvem de giz 
Como um corpo ao nascer da manhã
a esperança vazando às bordas do poço
o canto difundido no circulo
ou o livro aberto pela dedicada leitora.

quarta-feira, 19 de março de 2014

O pássaro

Passarinho
por onde anda
nesses dias?
Já não canta minha porta
já não pia a manhã
não abre as asas e voa
(longe longe)
em busca da ternura
que tinham seus olhos
Não risca mais o chão
Não atravessa mais as nuvens
Até mesmo os pequenos bichos
que comia
deixaste de lado

Por acaso encontrou uma família?
Um propósito à vida?
Uma garrafa cheia de álcool
e alguns livros velhos?
Conheceu novos amigos
e com eles se diverte?
Ou vagueia os tempos
enquanto observa o mundo?

Passarinho
Aqui tudo está mudado
a casa vive vazia
Os quadros não me servem
Perdi alguns quilos
enquanto dormia longas noites
As unhas estão roídas
A calvíce tende a aparecer
Cada hora que passa
empalidece minha pele

Agora vivo só
pequeno amigo voador
No silêncio da madrugada
no calor do meio dia

Ah,
tenho dores
e desconhecimentos.
Durmo numa cama
que dobra meu tamanho
As vezes sonho com sua falta
outras não

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Desconstrução

"Edifício poço luz/ nome assobio no vácuo/ esperança de emergência" - C.D.A

Um prédio implodido
não é mais um prédio
não é mais vida, não é mais medo
mais desejo
O prédio derrubado, como a lágrima dos olhos
não é história, nem sonho
Não é a imagem vista pelos cegos
não é o gume da faca que corta
não é o desenho que o engenheiro
empapou na água

As vigas caíram, as armações
o duro aço de suas colunas
se quebrou
como palitos de madeira
A tinta da parede descascou
as janelas, tortas e disléxicas
já não iluminam ou se deixam abrir.

Caído, tal o corpo do bêbado
o prédio demolido agora se foi
fugiu-nos em mares de poeira
vozes de cal
distintos gritos da dinamite instalada em
seu alicerce. Não há mais moradores
em seu terreno

Os tijolos, os blocos, a areia
o preto reflexo do suor dos trabalhadores
a flor amassada, a flor crescida nas quinas da quadra
a memória das horas gastas
Partiram, uma a uma
como a náusea dos marujos
o gasto dos pródigos

E no edifício, no que é sua memória
um menino dormia
Uma mulher deliciava-se em partituras
um cachorro gastava latidos pela noite
alguém cozinhava feijão
enquanto um corpo diluía-se no próprio corpo do outro.
E haviam luzes acesas ao longo dos andares
placas comerciais, animais, câmeras
e um garoto que olhava da rua

Um prédio desnudo, sem altura ou base
desaparece da cidade. E com ele
o amor e os moradores
o som e a palavra
a mobília, o sexo, o cheiro, a fantasia dos loucos
o canto, o espaço, o leito
as plantas postas na calçada





sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Um vaso

Toco um vaso
e o sinto na ponta dos dedos.
A intransponível forma de sua porcelana
é rígida e concisa.
As flores vermelhas presas a secura
da composição
a dor comedida das cores
atadas ao frio material

Sinto o vaso e sei que não me espelho
em seu interior
minha imagem perdida
na profundidade do corpo
na ressonância das ondas

Olho o vaso e suas vértebras
o ângulo de todas as curvas
solitário como um elefante
um leão a beira mar.

Perdido em sua própria maré
o vaso se solta de mim
foge pelos dedos negros
come meus olhos e minha ansiedade
em busca de libertação.

Onde haviam flores, só resta
o barro falecido e cortante
o opaco do lirismo tatuado na pele
o vaso sombrio
sem flor, sem cheiro, sem nada

Os colibris se perderam
as flores se perderam
se perderam também os homens e
as águas que fluem a história. Os nomes
o número das camisas
a memória de minha avó

A flor que não desabrochava murchou
o camponês cuidando da vaca morreu
o vento que leva o outono
o sangue espalhado nas fábricas
tudo se foi. Tudo se foi

E eu também me fui
em forma de cacos
que atravessam os dedos

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Travessia

"talvez porque nunca tivesse olhado, a não ser, um sonho" - Jorge Luis Borges

Não me significa nada
o caminho percorrido pelo leito do rio
ou o asfalta das estradas.
Tudo é como a pedra estancada no chão
intacta
disposta a passagem do vento,
a histeria dos cidadãos

Já não penso mais no individuo perdido
na cidade ou no mar.
Penso no desejo guardado pelos braços
a raiz das cores da pele
a textura do espirito:

Mas de que interessam os caminhos se existe um labirinto na nossa rota?
A história, a língua, a polifonia e a matemática dos gritos desesperados, para que servem?
O que fazer com as noites de lua branca e também com as primaveras?
Se não nascemos nas estrelas, por que querer voar?

Sem reflexo e sombra
procuro algo perdido dos mapas, das esferas, dos livros
e da secreção dos apaixonados.
algum alimento que nutra minha carne
e também minha bile
Uma busca ao imaterial, o eterno mar de alguns
(mas se não posso ultrapassar os limites da carne, então por que alimenta-la?
Por que querer adubar uma planta seca?)

Quero entrar para a história do mundo
e em seu portão escrever meu nome
honrar cada lágrima escondida do medo.
Um mausoléu resguardado de ternura
os metros de horas devorados por uma fumaça negra
que as ondas do passado insistem afogar